Esposas & Filhas – Elizabeth Gaskell

Estamos em Hollingford, uma cidadezinha da Inglaterra no Século XIX, e temos a chance de conhecer e acompanhar o dia a dia de algumas pessoas bem diferentes entre si. Dentre eles, há Molly, filha única do viúvo Mr. Gibson, médico da região, que trabalha muito atendendo pacientes em suas residências e também ensinando aprendizes jovens que desejam seguir sua profissão. Por conta do seu cargo, ele também tem contato com diversas famílias da região, entre elas as solteironas Miss Brownings, que eram próximas de sua falecida esposa, o fazendeiro aristocrata Hamley, sua esposa e dois filhos, os nobres Lord e Lady Cumnor, que vivem em Towers, entre outros.
Como quase não fica em casa e tem dificuldade de saber como criar e educar uma jovem mulher, já que Molly está crescendo e começando a despertar o interesse dos rapazes, Mr. Gibson decide hospedar a menina na residência Hamley Hall com a intenção de aproximá-la de Mrs. Hamley enquanto os filhos do casal estão estudando fora. Molly rapidamente se torna amiga da família, sendo muito querida por todos. Quando os jovens visitam os pais, ela logo se encanta por Mr. Roger, com quem nutre uma amizade.
Enquanto isso, Mr. Gibson decide se casar novamente para conseguir uma madrasta para a menina e acaba escolhendo Miss Clare, ex-governanta de Towers, uma mulher autoritária e cheia de regras, que controla a vida da menina e tem fortes opiniões sobre tudo. Como se importa bastante com as aparências, sempre quer visitar a residência dos antigos patrões, com quem ainda mantém contato. Mas Molly nutre lembranças ruins de um acontecimento que vivenciou lá quando ainda era pequena e se sente desconfortável no local. Juntamente com a nova esposa de seu pai, Molly ganha uma nova irmã com quem logo faz amizade, Cynthia, uma jovem bela e coquete, que conquista todos os rapazes por onde passa.


Em meio a segredos, conflitos, traições, mortes, fofocas, reviravoltas e muitos acontecimentos, adentramos nas vidas dessas pessoas que são ao mesmo tempo simples e complexas, e conhecemos um pouco mais sobre a sociedade interiorana da época sob a fantástica e fascinante perspectiva de uma autora consagrada que viveu naquele século, Elizabeth Gaskell.
“Nem Lady Cumnor, nem suas filhas estavam livres da mesma provação, e, também, de um pouco da mesma fadiga. A fadiga que sempre acompanha os esforços conscientes de se comportar da melhor maneira para melhor satisfazer a sociedade em que se está inserido.”
A princípio, pensei que a trama deste livro iria focar mais na história de Molly com Mr. Roger, com os demais personagens transitando entre eles. Mas felizmente não foi como imaginei e o enredo ganha proporções muito maiores do que apenas girar em torno de um romance entre os dois jovens. Pelo contrário, temos a oportunidade de conhecer diversos personagens tão importantes quanto eles, que tiveram suas próprias histórias exploradas e desenvolvidas, assim como suas personalidades marcantes e bem apresentadas. Cada um tem sua própria evolução e todos merecem destaque, ainda que o papel desempenhado não seja tão grande.


E, mesmo que haja romance, esse também não é o foco do livro. Na verdade, como a própria autora considerava, essa é uma obra de história cotidiana, então vamos conhecer os personagens, suas personalidades, modo de pensar e agir, como interagem entre si e como vivem seu dia a dia. Há de tudo: amor, amizade, fofocas, intrigas, revoltas, carinho, personagens femininas fortes, personagens adoráveis, outros irritantes ou com atitudes ruins que acabam incomodando, entre muitos outros detalhes.
O mais interessante de tudo isso é que toda a trama é completamente interligada, então mesmo acontecimentos que não parecem importantes, acabam ganhando maior proporção mais para a frente. Desse modo que a gente se sente inserido dentro do livro de uma forma tão impactante que é como se fossemos um personagem onipresente em todos os lugares, não apenas como amigo de um dos protagonistas, mas como se fizéssemos parte do enredo juntamente com eles.
E olha que foi uma delícia poder mergulhar na sociedade rural da Inglaterra Vitoriana sob o ponto de vista de alguém que realmente viveu naquela época e ainda conseguiu transmitir em belas palavras tudo aquilo, o que torna tudo ainda mais real e especial sob meu ponto de vista. 


Minha personagem favorita foi, sem sombra de dúvidas, justamente a protagonista principal, Molly. Ela é uma moça doce e ingênua, de ótima personalidade, que também tem uma grande força dentro de si e busca fazer o melhor para si mesma e para o próximo, mesmo que algumas vezes se questione sobre alguns assuntos. E é isso que a torna mais real, humana e amável. Adorei acompanhá-la e vê-la crescendo cada vez mais dentro de sua própria história.
“Era melhor pensar na felicidade dos outros do que na sua própria. Mas, será que aquilo não significava desistir de sua individualidade, extinguindo todo o seu amor e os seus próprios desejos verdadeiros?”
Mas é claro que outros personagens ganharam tanto destaque quanto ela, como Cynthia, que por vezes é muito manipuladora e faceira, mas também é dona de uma personalidade forte e marcante que conquista por ser à frente de seu tempo. Adorei o pai de Molly, Mr. Gibson, apesar de ter ficado incomodada com algumas de suas atitudes ou discursos, que tentei compreender por conta da época em que viveu.
“Ama-me como sou, querida, pois nunca serei melhor.”
Outros destaques são os membros da família Hamley, Mr. Roger é um homem bom e cavalheiro que também cresce bastante conforme as páginas vão sendo avançadas. Ele é o rapaz por quem Molly logo se interessa e dá para notar o porquê de isso acontecer. Porém, também teve momentos que fiquei incomodada por suas atitudes. Mr. Hamley é seu pai, um fazendeiro meio bruto, mas que também tem um coração grande, que ama a esposa e os filhos. Nem sempre ele pode ter as melhores ideias ou atitudes, mas em sua mente acredita que o que faz é para o melhor. Mrs. Hamley é uma amável mulher que me conquistou bastante, sendo também uma de minhas preferidas. A amizade entre ela e Molly foi sincera e muito bonita de acompanhar e fico emocionada até agora quando lembro de suas cenas juntas.


Para finalizar, vou falar um pouco da pessoa que menos gostei de conhecer: Mrs. Clare Kirkpatrick, que se casa com o pai de Molly. Em diversos momentos fiquei irritada com ela e incomodada por suas atitudes e discursos. Creio eu (pelo que me lembro) que não há um momento sequer que eu tenha gostado dela. Porém, entendo sua existência no andamento dessa trama, já que ela é de suma importância para a mesma. Há diversos outros personagens incríveis e bem construídos que eu poderia citar aqui, porém demoraria muito e essa resenha ficaria ainda maior do que já está. De qualquer forma, convido vocês a lerem esse exemplar para poderem conhecer melhor cada um deles de perto.
Confesso que esse volume despertou diversos sentimentos genuínos em mim e um deles foi raiva. Sei que o mundo era outro no momento em que foi escrito e entendo que as pessoas agiam e pensavam de maneira bem distinta de mim. E é isso que justamente mais me fascina em obras clássicas e históricas. Porém, ao mesmo tempo, tenho alguns sentimentos enraizados dentro do meu peito e, quando vejo alguém diminuindo, por exemplo, as mulheres ou os negros (como aconteceu nessa leitura), não consigo evitar me sentir completamente irritada e chateada com a situação. Ao mesmo tempo em que fico contente em ver que pelo menos uma parte do mundo melhorou e a sociedade de maneira geral também está com pensamentos mais avançados com relação a esses tópicos e alguns outros – ainda que falte bastante para se tornar o mínimo de algo aceitável ou agradável. Porém, não podemos negar que já houve algum tipo de progresso nesse sentido e ler algo assim só nos faz entender ainda melhor esse ponto.
“Minha querida, não repita o mal que espalham, por melhor que seja a fonte”
Essa é uma obra mais madura da autora e acredito que o leitor que se aventure a lê-la também tenha que ter a mente ou a alma num nível semelhante. Digo isto porque é uma história bem minuciosa, com uma narrativa lenta e, como Elizabeth, infelizmente, veio a falecer antes de concluí-la, não há um final plenamente satisfatório para quem busca desfechos mais completos. Inclusive, um dos pontos mais tristes é porque não temos a oportunidade de acompanhar a felicidade de uma personagem muito querida, já que, apesar de estar sendo encaminhado para isso, o texto é encerrado antes de algo acontecer.


Porém, ainda que não tenhamos tido a oportunidade de vê-la dando o final que imaginou para seus personagens, Gaskell deixou tudo bastante encaminhado, então temos um vislumbre do que estava para acontecer. Inclusive nessa edição da Pedrazul temos a oportunidade de ler um capítulo denominado “Considerações Finais”, no qual Frederick Greenwood, o próprio editor da Cornhill Magazine (onde este livro foi publicado pela primeira vez em capítulos entre agosto de 1864 a janeiro de 1966), comenta um pouco sobre o futuro dos personagens e o que a autora provavelmente teria feito no desfecho.
“Mas o destino é como uma moça faceira e astuta, que arquiteta seus planos tão imperceptivelmente quanto um pássaro constrói ninho com os mesmos tipos de gracejos menosprezados.”
Ainda que este volume tenha mais de quinhentas páginas e a diagramação traga uma fonte pequena para o miolo, a linguagem do texto é simples e de fácil entendimento, mesmo para quem não tem costume de ler clássicos neste estilo. É claro que o ritmo de leitura é mais lento, mas toda vez que eu pegava o meu exemplar para ler, mergulhava tão fundo em suas páginas que nem mesmo notava o tempo passar.
A edição da Pedrazul está maravilhosa com capa e quarta capa lindas, folhas amarelas, diagramação confortável, o capítulo extra com os comentários do editor acerca das intenções de Gaskell para o final, e, minha característica preferida, ilustrações originais de George Du Maurier, presentes tanto na Cornhill Magazine quanto na edição em formato de livro da Smith, Elder.


Esse livro também ganhou sua adaptação pela BBC, a qual ainda não tive a oportunidade de assistir, mas já sei que preciso. Depois volto para comentar o que achei.
Para os leitores que gostam de obras clássicas que te fazem mergulhar num outro século e conhecer um pouco mais sobre as pessoas, seus comportamentos e o dia a dia, assim como acompanhar diversos acontecimentos e reviravoltas que não deixam a trama ficar parada, “Esposas e Filhas” é uma opção certeira!
Avaliação



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