Relato de um Certo Oriente - Milton Hatum


Antes de fazer faculdade de Psicologia eu cursei um semestre de Publicidade e Propaganda, devo dizer que foi um período bom, onde aprendi muitas coisas que me fizeram mudar radicalmente de curso quando eu não pude continuar. Nesse semestre em questão eu tive uma aula chamada Comunicação e Expressão, e durante toda a duração o ensino foi feito com o auxílio da leitura de Relato de um Certo Oriente, do autor brasileiro Milton Hatum, publicado pela Companhia das Letras. Como isso já fazem muitos anos e tinha uma memória boa do livro resolvi reler.

Muitos anos depois de sua partida uma mulher volta a cidade onde nasceu, Manaus, para rever sua mãe adotiva, Emilie, patriarca de uma família de imigrantes libaneses. Ao se deparar com a casa de sua infância lembranças são evocadas, dores e fatos que marcaram a vida desta família que criou seu modo de existir ligando a origem do Oriente com os costumes brasileiros.

A narrativa é feita em primeira pessoa através de relatos de diversos narradores em 8 capítulos, assim existe uma multiplicidade de vozes através da memória dos personagens que  não é linear e tem diversos flashbacks, além de repetir a mesma situação através de vários olhares, como o acidente de Soraya Ângela que é muito relatado. É através desses diversos olhares que ao final da leitura temos uma visão de conjunto do que realmente aconteceu em cada situação.

O clima do livro é soturno, e vezes fúnebre. Por se passar em um local brasileiro como Manaus eu imaginava que seria mais alegre, mas o foco das estórias são nos momentos tristes e sofridos desta família. Honestamente parece que eles mais foram tristes do que felizes, e mesmo Emilie que parece ser a mais alegre entre todos sofreu muito para conseguir fazer seus pequenos momentos de felicidade, como por exemplo, as doações de alimentos ou festas natalinas. O lado oriental se dá muito nas decorações da casa, na loja da família e no conjunto de animais que vivem na casa, além é claro de costumes que normalmente são evocados pelo pai e seu alcorão.

Muitos temas fortes são trabalhados como suicídio, gravidez na adolescência, relação de tensão entre marido e mulher, preconceito contra mulher e etc. Mas não de forma comum, e sim através das pessoas que vivenciaram estes fatos e viram como cada uma destas coisas devastou aos poucos esta família, sem de fato colocar isso em questão.

Emilie é a matriarca, embora seja de longe a mais comentada ainda senti um pouco de falta de saber mais sobre sua personalidade, na verdade gostaria de ter ouvido um relato dela em primeira pessoa, visto que é uma personagem de personalidade forte e que enfrentou diversas tribulações, como a morte do irmão, da neta, e a personalidade forte e agressiva do marido.
Nossa 'protagonista', e digo entre aspas porque ela não é quem narra todos os capítulos, é uma incógnita porque não tem nome e quase não fala de si, apenas conta os fatos que viveu e seu sentimento em relação a eles. Não entra em detalhes quanto a o que a levou se afastar da família ou sua relação com sua mãe verdadeira.

Dorner é um fotografo alemão, amigo da família e importante em diversos momentos. Hakim é o irmão da protagonista, e outro personagem que saiu da cidade e fala de longe através de cartas com a irmã. Parece ser o queridinho de Emilie. Hindié, é amiga da Emilie, e é quem a acompanha até o final da vida, tem um capítulo seu sobre os momentos finais da mesma.

Ao começar o livro a sensação é que existe alguma coisa errada porque o leitor é jogado nas cenas sem explicação, sem saber quem está falando e a partir de qual ponto ele está, já que não temos dados suficientes para compreender as lembranças enumeradas pela protagonista. Mais ou menos no terceiro capítulo os pedaços começam a tomar forma, e uma estória central se forma também. A compreensão geral da trama se dá mais nos capítulos finais, e a verdade é que quando terminamos o livro já temos que relê-lo para assim ligar as pontas daquilo que ficou descosturado no começo do livro. É um livro cíclico, que deve ser retomado pelo começo para fazer sentido.

Relato de um Certo Oriente é uma obra para releitura continua, que a cada leitura lhe permite uma nova identificação, ou uma nova compreensão. As vezes soa como mil e uma noites, as vezes como um relato de uma família que passou por tristezas demais para permanecer junta. O fato é que é uma obra que acrescenta no inconsciente em camadas que talvez não fiquem claras. Uma obra diferente para quando você quiser ir para os recantos do norte e sentir a brisa do oriente.

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