O Doloroso Ato de Emprestar Livros


Tem certas coisas que todo mundo precisa fazer uma vez na vida, mas que não quer de jeito nenhum: apresentar aquele trabalho na frente de todos os seus colegas, dançar com platéia assistindo, passar vergonha com testemunhas. Comer jiló, tomate e tomar própolis. Ir para a escola em dia de frio. Esses e tantos exemplos que eu poderia citar são o cerne de uma questão extensa, mas eu vou descrever aqui algo mais específico, que acontece a praticamente todos nós, apreciadores de histórias colocadas no papel: o ato de emprestar livros.
A sensação é terrível. Enquanto você caminha para entregar o livro para o colega/amigo/desgraçado (na verdade, não importa), ele começa a pesar quilos na sua mão, como se se agarrasse a você, pedindo por socorro, e você se pergunta se realmente é uma alma boa e porque está fazendo isso com um ser tão indefeso. Você cuida bem do livro: nenhum amassado, nenhuma mancha, a capa está lustrosa como no dia em que você comprou e, se apostar, ainda prevalece o cheirinho bom de livro novo nas páginas—o que ele fez para merecer tal castigo?- você pensa, mas não tem volta. Já era.
O amigo/colega/desgraçado—que nesse caso também pode ser chamado de sequestrador—espera de braços estendidos pelo seu tesouro. Ele tem um sorriso satisfeito, mas também pode ser um sorriso psicótico e sua mente vagueia pensando em todas as páginas que ele amassará, rasgará e manchará de comida e gordura. Esse pensamento te faz comparar o empréstimo do pobre livro ao envio de um filho para a guerra, e enquanto passa o livro para a mão do seqüestrador forçando um sorriso de está tudo bem, é só um empréstimo, está tudo bem, a única coisa que você consegue pensar é quando vai ver seu precioso amigo de volta. Se é que vai vê-lo de volta. O pensamento te dá náuseas.
Está feito. O livro está emprestado, e enquanto o seu amigo desgraçado se afasta com ele em mãos, você percebe que é tarde demais para tentar um resgate—agora é esperar e rezar. Esperar e rezar muito. Sua mente vagueia para o espaço livre que o livro deixou na sua estante e você se pega com uma vontade violenta de lê-lo novamente—na verdade, é só um pretexto desesperado do seu lado leitor para tê-lo em mãos novamente, mas interessa? Ele já está distante, provavelmente sendo torturado. Você se encolhe.
E assim é, durante todo o tempo de distância, onde você começa a pensar se é uma mãe desesperada ou uma drogada em fase de abstinência. O buraco do livro na estante salta aos olhos, mas VOCÊ NÃO VAI PREENCHÊ-LO! Todas as torturas para você fazer com o indivíduo que está com o seu melhor amigo lhe passam pela cabeça: um dedo arrancado por cada página amassada. Um pedaço da perna por cada mancha de comida/óleo/QUALQUER COISA, NÃO SÃO PERMITIDAS MANCHAS! Uma órbita ocular por cada página rasgada, e na falta de órbitas oculares, você começa a considerar a hipótese de arrancar os dentes, um a um, caso algo aconteça. E, se caso o livro for entregue rasgado, amassado e pranchado, você planeja friamente onde vai queimar a pessoa dolorosamente parte por parte.
Mas ele não devolve o livro, e a lei não te apoiará se você cometer um crime sem motivo, então você espera. Nada pacientemente. Chega sutilmente, pergunta o que ele está achando da história, quando na verdade só quer lembrá-lo de que o livro é seu, e que o quer de volta. A indireta é sutil, mas está lá, principalmente quando você faz a mesma pergunta 20 vezes em apenas uma semana. Está na cara que você está desesperado pelo livro. Mas o indivíduo só ri e diz que está adorando tal parte. Que está odiando tal parte. Que vai te devolver na semana que vem.
Qual semana que vem? Em um ano, apenas existem 52!
No fim, entretanto, tudo acaba bem. Ou nem tanto. Quando você menos esperar, o tal amigo (apesar de que a amizade está por um fio a essa altura) chega e te entrega o livro. A história é ótima, ele diz, e agradece, parecendo feliz. Uma parte sua quase se sente bem por ter ajudado uma alma sem cultura, quase, mas ela perde rapidamente para o instinto que te faz abrir as páginas com olhos de águia, folheá-lo como um scanner, cheirá-lo e detectar as falhas. Em alguns casos, sorte: o seu amigo sobreviveu ao perigo. Em outros, nem tanto: você quase o sente chorar com as manchas e amassados. E, embora sua mente esteja revivendo com um prazer perverso as cenas de tortura que você criou, sobrepondo a imagem do seu, naquele momento, ex-amigo nelas, você não faz nada além de forçar um sorriso agradavelmente maníaco, dizer um de nada entre dentes e esperar para chorar as perdas em casa. E, claro, garantir a si mesmo que não vai emprestar livros para ninguém, nunca mais.

Até o próximo amigo. Porque, acima de leitores, nós somos gente, e não temos vergonha.
>> Esse post está participando do Top Comentaristas Nº 17 - FORMULÁRIO 



Comente com o Facebook:

6 comentários:

  1. Júlia!!!! Vc me descreveu!!!! kkkkkkkk Gente, eu imaginei coisas mais perversas.... bem, deixa pra lá!

    É bem assim que me sinto toda vez que empresto um livro, não tem como, vc ta acostumado com seu livro na estante, e se tem alguém que não se toca e pede emprestado. Tenho minhas amigas de confiança, pessoas que sei que vão cuidar do meu livro com muito carinho, mas tem outras tbm que nem se me pedir de joelhos eu empresto.

    Adorei seu texto!

    bjo^^

    ResponderExcluir
  2. Texto perfeitooooo *--*
    Descreveu completamente como eu me sinto emprestando livros, mangás, e aparelhos eletrônicos (sim, meus amigos pedem isso tbm ¬¬). Depois que um dos meus livros voltou com a lombada marcada (como quando um amigo ARREGANHA o livro pra ler >.<), nunca mais emprestei.

    ResponderExcluir
  3. Uau. Nada melhor que esse textinho para descrever tudo o que eu sinto ao emprestar um livro.
    Gosto de ver o sorriso de satisfação quando me entregam e elogiam a história, mas detesto ver que não cuidaram tão bem quanto eu.
    Mas tem uma amiga pra quem eu empresto sem pestanejar (e agora ela é a única), pois sempre cuidou bem e lê tão rápido quanto eu, então pra ela, e unicamente ela, empresto os meus bebês que voltam da mesma forma que foram.

    ResponderExcluir
  4. kkkkkkkkk OMG! Me descreveu perfeitamente.
    A última vez que emprerstei um livro foi a uns quatro anos atás com aquela maior dor no coração, minha amiga demorou um tempão para devolvê-lo, e eu já fiquei com medo pensando que não voltaria a vê-lo.

    No fim, ele voltou com alguns amassadinhos e a capa meio marcada, mas mesmo assim deu vontade de chorar. Consequentemente, hoje eu até evito falar para os outros que eu tenho ou comprei tal livro, com medo de ter que emprestá-lo.

    Adorei o seu texto (principalmente a parte colega/amigo/desgraçado, é assim mesmo a pessoa passa rapidamente de amigo a desgraçado).

    ResponderExcluir
  5. Que ótimo!!AMEI a descrição de leitor psicopata...kkkkkkkkkk
    Ri muito, mas brincadeiras a parte acho que pera quem realmente ama seus livros, seus bebes, seus preciosos evita de todas as maneira emprestar seu amado livro, e quando o faz seleciona as pessoas como se fosse um concurso.PELO MENOS EU SOU ASSIM!!
    A pessoa que mais empresto livros é a minha mãe e mesmo assim eu digo CUIDE COMO SE FOSSE SEU FILHO!! kkkkkkk
    Não é fácil conviver com tanto amor!! ♥
    Belo texto parabéns!!
    Bjus

    ResponderExcluir
  6. Nossa que sofrimento mulher, com certeza eu não sou assim, kkkk
    Bjs, Rose.

    ResponderExcluir